Creio ter lido o termo "cyber-fetichismo" em alguns lugares, bem como cyber-logo e afins. A discussão proposta é, mais ou menos, que o "punk" da contestação social vem sendo deixada de lado pelo uso do enamoramento pela "Magia da Tecnologia".
O pessoal na casa dos 35 ou mais deve se lembrar de uma serelepe "peituda" (as aspas são para ressaltar a coisificação da moça como marca) famosa na época apresentando um produto qualquer e dizendo "É Tecnologia, não é Feitiçaria!".
Gosto da frase porque ela ilustra, sob alguns aspectos, a idéia de que os avanços tecnológicos, muitas vezes, são exatamente isso para o publico consumidor em geral: Uma maravilha, um pequeno milagre - ainda que da tecnologia. E a principal razão pela qual discordo que o cyberpunk tem se perdido no enamoramento tecnológico e perdido seu foco crítico.
Vamos lá:
Primeiro, em um panorama histórico, toda e qualquer tecnologia nova foi relacionada a um fetiche, a algo mágico, em certa medida.
O Fogo - uma tecnologia que foi, a seu modo, mais revolucionaria do que a roda, historicamente, permitiu a construção de outras ferramentas, causou revoluções gastronômicas, trouxe conforto na forma de luz e calor, servia como arma e afins. Foi a primeira ferramenta, de fato, com este grau de potencial transformador.
Mais do que isso, o fogo representava um papel possivelmente potencializador das relações humanas. Na noite, em vez de simplesmente se dormir na escuridão de uma caverna, isso permitia a uma pequena aldeia ou tribo familiar se sentarem em torno de algo, olharem nos rostos uns dos outros e contar e ouvir histórias.
O fogo era tão importante que, rapidamente, ganhou histórias e mitos a seu respeito e surgimento. A mais poderosa delas que eu conheço é a de Prometeu. Entregando o fogo aos homens eles lhe deu um instrumento tão poderoso que até os Deuses ficaram preocupados.
Em casas romanas havia uma deusa da lareira, que era homenageada deixando-se um pedaço de fogo ardendo todo o tempo em sua homenagem.
O simbolo máximo do espirito e comunhão moderna - representado pelas Olimpíadas - tem na tocha e na pira olimpíca e no seu acender e apagar seu momento máximo.
Se pensarmos no respeito que a Roda, a pedra lascada, a construção de catapultas, a agricultura, o uso de animais de carga, a escrita, a tecnologia naval a construção de diferentes meios de comunicação, eletricidade, era espacial, era digital, e sabe-se mais o que vem por aí, todas estas fases passaram por maravilhamentos.
Quando pensamos em cyberpunk e sua essência, o principal motivador deste gênero de cultura e produção de idéias, consiste em um certo maravilhamento com as novas tecnologias - e os milagres que por elas são produzidos - e a crítica social por detrás disso, fortemente produzida.
Blade Runner (o filme) faz da engenharia genética uma incrível força produtora de maravilhas, ao mesmo tempo que a pobreza de qualidade de vida é ressaltada a cada cena do detetive vivido por Harrison Ford.
Em essência, eu diria, que cyberpunk é o gênero que enxerga a distopia na utopia (e vice-versa), colocando para dialogar o encantamento pela novidade com o remorso e o medo em como esta nova tacnologia maravilhosa poderá ser usada, não como libertadora, mas como nova fonte de opressão e limites individuais e sociais.
Em outras palavras, cyberpunk, em essência, sempre será uma ansidedade (uma expectativa de se algo será bom ou ruim), jamais adequadamente respondida. O que o marketing atual parece fazer é tentar potencializar ao máximo os aspectos "libertários" de uma marca ou produto, em uma tentativa de se minimizar ou se desqualificar as criticas.
Por exemplo, se voce apresenta um novo computador de pulso com hologramas e acesso ilimitado a redes sociais, com a imagem de uma sexy ciborg (peituda, claro) falando com ele em uma voz sexy e macia, o impulso inicial do mercado será o de encantamento.
A beleza da coisa é que, a partir dessa propaganda uma série de criticas serão secundariamente construídas: Por exemplo:
- porque uma humana semi-robótica e não uma figura humana? Há algo de Harawyniano na forma mcomo a cyborg sexy aparece ali?
-O aparelho é apresentado em um ambiente urbano em um fundo branco, limpo e organizado - Como retorno possível, uma crítica mostrando esta imagem e o de um lixão com toneladas do computador de pulso são possíveis.
-Em que condições esse aparelho "libertador" é produzido? Para trabalhadores em regime de semi-escravidão, este produto representa liberdade?
-O produto é um sucesso e uma série de jovens começam a usar o aparelho com frequência - Quase consigo visualizar uma série interminável de textos e charges criticando o uso prolongado do produto (por exemplo, transformado em uma algema, etc) que disso resultaria.
O erro é acreditar que cyberpunk tenha algo a ver com que as empresas fingem que vendem sob este nome e estética. Você SEMPRE terá consumidores encantados com algo. Mas sempre, a partir do momento que a critica cyberpunk passou a ser mais estruturada e pensada, os contrapontos diversos - arquitetônicos, linguísticos, psicológicos, sociais, ecológicos etc - que serão geridos a partir disso.
Cyberpunk diz respeito a uma certa marginalidade e relativa invisibilidade social, cuja melhor imagem que consigo pensar é a de um indivíduo parado debaixo de um mega-arranha céu, ou no meio de uma multidão.
O "cyberpunker" é o sujeito com a capacidade de se indignar (inclusive de si p´roprio)- e essa essência não desaparece porque, na moda, o visual foi adotado por essa ou aquela peça publicitária.
O desafio, acredito, esteja não em não se deixar o "verdadeiro cyberpunk sobreviver", mas em se pensar novas formas de se utilizar o sistema e as tecnologias contra ele. Uso de redes sociais para uma objetificação dos corpos femininos, a crítica ao modo de produção do objeto, falas sobre como o produto pode ser usado de formas muito mais criativas e revolucionarias do que os bem-comportado uso padrão (tipo o uso de Xbox como uma rede de internet alternativa no livro "Pequeno Irmão"), etc.
Cyberpunk só existe porque EXISTE o fetichismo tecnológico. Ele é como um vírus, um parasita que se alimenta das ilusões utópicas tecnológicas e as coloca em cheque. Se a Technée é a essência do homem, como propõe Umberto Galimberti, o cyberpunk é a essência do uso da tecnologia no mundo real. Porque para além das idéias que uma Apple da vida vende, a realidade do mundo ao redor é a de que um Ipod é feito com trabalho escravo, e é para isso que o Movimento pode ser utilizado. Não impede as grandes corporações de serem quem são, de imediato.
Não se vende como solução de fato pronta e definitiva, mas se apresenta como um processo, para além da ansiedade resolvida com entretenimento e consumo descabeçado, que lentamente e individualmente atinja a coletividade e faça se valer.
Cyberpunk faz mais possíverl que o individuo invisivel perante o grande prédio corporativo passe a incomodar, exatamente por que sua existencia, em essência, impede o mito da "utopia tecnológica" de se concretizar.
Ou, se preferirem assim, Cyberpunker é o sujeito que, quando nossos ancestrais contavam uma história fantástica de uma calçada, permanece apontando incongruências narrativas que, se não desfazem de vez a narrativa sensacionalista, no mínimo fornece uma alternativa interpretativa a quem mais em torno da fogueira, realmente se disponibilizar a enxergar alternativas.
O Cyberpunk não morre. Ele se adapta.